sábado, 31 de janeiro de 2015

NUNCA TE ESQUEÇO

Era uma noite linda. Tranquila. As janelas abertas e um tempo gostoso, que dava pra dormir de camiseta e calção sem sentir calor ou frio. Dessas que a gente facilmente se entrega e se deixa levar pelo aconchego de nossos sonhos de criança.


Não lembro em que momento foi que aquela fada linda, azul da cor da lua, delicada, frágil e tímida, entrou por minha janela e, sem dizer uma palavra, deitou-se ao meu lado e se encolheu em mim.


No fundo de meu coração ouvi sua carne me pedindo pra que eu ficasse quietinho ao lado dela. Que fôssemos um ao outro apenas um abrigo seguro naquela noite linda em meio aos dias de decepções e medos.


Foi tudo o que ela me pediu calada em troca daquele momento único de sua entrega completa à minha alma nua.

Até hoje sonho com aquele momento fugaz que me beijou por inteiro, e com o infinito vazio que ficou para me lembrar pelo resto de minha existência que nunca devemos trair nossos próprios corações.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

FALTA DO QUE DIZER

Por Edson Vidigal

Depois de algum tempo, acostuma-se a tudo.

E já agora, com uma chuvinha fina na janela, um céu que não se vê o céu, uma paz fria, seca por dentro e molhada por fora, carros passando sobre as águas das ruas fazendo ondas ao lado do rio e um ou outro rosnado de um ônibus (auto-bus por aqui...), chego a me sentir em casa no meu quartinho apertado e frio.

Dores nas costas, frio nos pés, um cheiro esquisito que hoje em dia sai de todos os colchões e travesseiros que compramos

Dizem que o cheiro é do produto anti-ácaro, anti-fungo, anti-alérgico, e pelo jeito anti-sono. Não se pode dormir com isso. Afinal, serve pra quê?

Quando se está sozinho é preciso tomar cuidado com a disciplina. Pois longe dos olhos e das reclamações dos outros podemos fazer o que quiser. Ou deixar de fazer o que quiser. E isso, no fim das contas, acaba nos levando a descobrir que o que não faz mal pros outros faz mal a nós mesmos.

A chuva fina me impele a continuar deitado. Fazendo nada. Divagando entre as letras enquanto a bateria do computador não acaba.Os tons de amarelo velho permeiam as paredes, as cortinas, a luz que vem do abajur, e até o diálogo lá longe vindo de alguma televisão. E no meu pequeno quartinho, tudo está a mão, inclusive esse cheiro horrível e incómodo anti-ácaro.

Às vezes o prédio, já velho, se estica, se contorce, dá uma alongada nos ossos. Uma estalada aqui, um gemido lá. Gememos talvez para lembrar aos outros (ou a nós mesmos) que ainda estamos vivos. Seja isso pro bem ou pro mal.

O fato é que na falta do que escrever, vamos soltando as palavras na espera de que algo aconteça. Na espera de que aquele amontoado de letras acabe por fazer algum sentido a alguém, por mais que não faça nenhum a nós. Quem sabe?

O que trazemos ao mundo não mais nos pertence. Somos senhores apenas de nossas ilusões.

Já parou pra tentar escrever imediatamente tudo o que lhe vem a cabeça?

Tente esse exercício! Vai se arrepender

Como me arrependo agora.

INSTAGRAM

Por Edson Vidigal

E lá estava ele.

Sua esposa a lhe olhar os sapatos.

Seu espírito a lhe sugar o chão.

Coisas que acontecem.

Momentos que se esvaem em completa morte de tudo o que segue. Um pós-modernismo subjacente às estruturas humanas, onde instantes plenos rompem todo o encadeamento da estória.

Mas não se podia evitar que tais singularidades ocorressem, assim como não se podia evitar que a continuidade crescesse, sedimentasse trocas e fluídos.

A oportunidade é a mãe da necessidade. E o necessário não é preciso, como sei que me confirmaria o Vaz.

Nessa vida tudo é troca, tudo é fluído. Um cansativo repetir de singularidades que se sobrepõe aleatoriamente em fotos e mais fotos na linha da vida de uma rede social.

Como aquela no facebook, onde um olhar e uma palavra lhe diziam muito mais do que queria ouvir.

MEMÓRIAS DE UMA COXINHA DE GALINHA

Por Edson Vidigal

Então um louco doce se vestiu de salgado e logo se viu perseguido por uma cerveja. Tomou-lhe a boca da garrafa e, de um só gole, deixou a pobre terrivelmente apaixonada por seu gostinho inesperado.

Não fazendo mesmo nenhum esforço pra se controlar, a loura (não mais gelada, mas sim embaçada e suada) fermentou, borbulhou e explodiu em espuma, toda derramada em cima daquele pano branco amarrotado, puído pelo tempo, já manchado de outros temperos e molhos.

O pobre pano, desavisado, seguia incólume a sua triste sina. Escondia em vão (ou realçava) aquelas pernas finas (já tão roçadas por tantas outras), que diariamente eram fecundadas de idéias, de amores, de paixões, de desilusões e de infinitas outras estórias.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O VELHO E O MARIDO

Por Edson Vidigal

Lá vinha ele.
            
Com seu rosto enorme e redondo, com sua silhueta de balão.

Olhares sorridentes se descobriam e se levantavam de uma manhã fria e úmida em meio a toda aquela pele já desanimada e seca, triste por não encontrar mais músculos que a preenchessem como haveria de ser.
            
Vinha de um futuro que já havia ficado pra trás em algum lugar entre as rugas de seu já não tão novo bigode chinês.
            
Não mostrava os dentes, mas sua alegria fazia bolinhos gordinhos e açucarados que espremiam os olhos de doçura.
            
Já era devagar, com a paciência que o passar do tempo presenteia em proveito de cada momento que, com certeza, não mais virá. E sua vagareza desconectava-nos de todo o mar. De todo o martírio de esperar.
            
Nas mãos, uma singela sanfoninha feita de um papel colorido, em cores fortes e contrastantes, que davam aquele gostinho que completa a leveza de um creme de natas. Tudo muito gorducho, muito felpudo, muito macio e quente.
            
Um calor que respirava leve, mas com a profundidade de um mantra. Algo que acolhia, que conduzia, que amparava, que nos embalava a um sonho bom, a uma paz cansada, a uma alegria de chegar.
            
Um toque de ocre e encarnado numa manhã cinza de tons pastéis. Um agasalhado toque morno que descia as escadas rumo à fonte, que já a essa hora ainda permanecia fria, gelada, molhada, úmida e ríspida como haveria de ser. Sempre transparente e reveladora em seu reflexo imparcial, reto e de uma beleza cruel.
            
Veio e se sentou à beira da fonte, sempre em seu ritmo alegre e lento.
            
E seus bolinhos doces apertaram mais os olhos, alegrando-nos talvez por compaixão.
            
Puxou sua sanfoninha para junto de si, em meio a suas gorduchinhas mãos, e por um momento chegou a flertar meus olhos, que encabulados deixaram fugir um suspiro desses de clara de ovos.
            
O suficiente para despertar no marido o calor que arde desde as primeiras perdas.
            
Num impulso, arrancou-lhe a sanfoninha, o coração, o seu respirar.
            
Tomou-lhe a voz e a rasgou ao meio, como que mordendo o seio de sua mãe para que não lhe roubassem o leite.
            
O velho, ainda com seus olhinhos espremidos por seus gordinhos doces e alegres, puxou inocente de dentro de suas cobertas uma segunda sanfoninha, bem mais simples que a primeira, mas de cores ainda bem fortes, alegres e quentes.          
            
Menorzinha, cabia em suas gorduchinhas mãos.
            
Só serviu para aumentar o ardor do marido, que agora rubro, arrancou-lhe o bico com os dentes, como se só deles viesse o leite.
            
Rasgou o tanto que pôde a pequena sanfoninha de papel.
            
Rasgou, e rasgou e rasgou.

Enquanto meu peito se apertava frio, e sufocava mudo, vendo a alegria daqueles olhinhos brilhantes secar em lágrimas, e aqueles gordinhos doces derreterem em choro.

SARDINHAS

Por Edson Vidigal

Resolvi me encolher aqui na pensão à tardinha. Botei as ceroulas, cobri-me na cama e aqui estou apodrecendo a alma com um pedaço de pão e uma garrafa de água.
           
Almocei três ou quatro sardinhas ensanguentadas que até agora me sobem à boca em alguns soluços num desagradável ruminar.
            
Sei que terei fome, mas não quero ter que me vestir de gente ou encarar o frio para comer. Prefiro morrer de fome quente.
            
Só eu e minhas sardinhas, que insistem em não serem digeridas.
            
Também eu não gostaria de ser digerido, se parar pra pensar. Talvez sim metaforicamente, mas nunca literalmente.
            
Como diria o Assis: aos vencedores, as sardinhas.   

E cá estou eu com elas.