terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O VELHO E O MARIDO

Por Edson Vidigal

Lá vinha ele.
            
Com seu rosto enorme e redondo, com sua silhueta de balão.

Olhares sorridentes se descobriam e se levantavam de uma manhã fria e úmida em meio a toda aquela pele já desanimada e seca, triste por não encontrar mais músculos que a preenchessem como haveria de ser.
            
Vinha de um futuro que já havia ficado pra trás em algum lugar entre as rugas de seu já não tão novo bigode chinês.
            
Não mostrava os dentes, mas sua alegria fazia bolinhos gordinhos e açucarados que espremiam os olhos de doçura.
            
Já era devagar, com a paciência que o passar do tempo presenteia em proveito de cada momento que, com certeza, não mais virá. E sua vagareza desconectava-nos de todo o mar. De todo o martírio de esperar.
            
Nas mãos, uma singela sanfoninha feita de um papel colorido, em cores fortes e contrastantes, que davam aquele gostinho que completa a leveza de um creme de natas. Tudo muito gorducho, muito felpudo, muito macio e quente.
            
Um calor que respirava leve, mas com a profundidade de um mantra. Algo que acolhia, que conduzia, que amparava, que nos embalava a um sonho bom, a uma paz cansada, a uma alegria de chegar.
            
Um toque de ocre e encarnado numa manhã cinza de tons pastéis. Um agasalhado toque morno que descia as escadas rumo à fonte, que já a essa hora ainda permanecia fria, gelada, molhada, úmida e ríspida como haveria de ser. Sempre transparente e reveladora em seu reflexo imparcial, reto e de uma beleza cruel.
            
Veio e se sentou à beira da fonte, sempre em seu ritmo alegre e lento.
            
E seus bolinhos doces apertaram mais os olhos, alegrando-nos talvez por compaixão.
            
Puxou sua sanfoninha para junto de si, em meio a suas gorduchinhas mãos, e por um momento chegou a flertar meus olhos, que encabulados deixaram fugir um suspiro desses de clara de ovos.
            
O suficiente para despertar no marido o calor que arde desde as primeiras perdas.
            
Num impulso, arrancou-lhe a sanfoninha, o coração, o seu respirar.
            
Tomou-lhe a voz e a rasgou ao meio, como que mordendo o seio de sua mãe para que não lhe roubassem o leite.
            
O velho, ainda com seus olhinhos espremidos por seus gordinhos doces e alegres, puxou inocente de dentro de suas cobertas uma segunda sanfoninha, bem mais simples que a primeira, mas de cores ainda bem fortes, alegres e quentes.          
            
Menorzinha, cabia em suas gorduchinhas mãos.
            
Só serviu para aumentar o ardor do marido, que agora rubro, arrancou-lhe o bico com os dentes, como se só deles viesse o leite.
            
Rasgou o tanto que pôde a pequena sanfoninha de papel.
            
Rasgou, e rasgou e rasgou.

Enquanto meu peito se apertava frio, e sufocava mudo, vendo a alegria daqueles olhinhos brilhantes secar em lágrimas, e aqueles gordinhos doces derreterem em choro.

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